Hoje é dia 20 de novembro de 2020, dia da Consciência Negra. Eu não diria que é um dia para se comemorar porque muito ainda precisa ser modificado para que tenhamos motivo para comemoração. Eu ainda preciso de mudança. A estrutura social e a estrutura das empresas e das indústrias precisam de mudança.
Do meu lugar de fala, fala branca, fala heterossexual, que descobriu o tanto de privilégios que possuia tarde na vida (e ainda estou descobrindo), de uma cidade do interior de São Paulo, sinto que ainda há muito o que aprender. Há algum tempo, uns dez anos talvez, o assunto racismo começou a fazer parte mais profundamente de minhas reflexões (sim, é um absurdo e eu lamento não poder modificar a data de início disso).
A triste verdade é que eu não sei quando foi a primeira vez que vi uma pessoa negra. Vi, mesmo, de notar a existência. Há pessoas negras no interior de São Paulo, lógico, mas elas, em geral, ocupam lugares na estrutura social que não faziam parte dos locais frequentados por mim. Na escola onde eu estudei até o que hoje é o 5o ano, não tive professores negros. Não tinha nenhuma criança negra na minha sala de aula. Nem o zelador, nem a bedel eram negros. Na igreja não tinha negros. Na minha sala do curso preparatório para a Primeira Comunhão não tinha negros. Eu não tenho memória de negros nessa fase e isso já é o suco do racismo estrutural que eu reconheço agora.
Do 6o até o 9o ano, eu estudei em uma escola pública, no centro da cidade. Veja, não era qualquer escola pública, não era a escola da periferia. Era a escola do centro. Lá, continuei sem ter professores negros. Mas, pela primeira vez, havia crianças negras na minha sala. Uma das minhas amigas nesse período era negra e foi com ela que eu aprendi qual era a melhor linha de ônibus que eu precisava pegar pra chegar na minha casa. Talvez ela seja a minha primeira memória.
Foi nesse período do Ensino Fundamental que nós estudamos História do Brasil. Lembro de flashes disso, mas, por exemplo, os indígenas brasileiros me foram apresentados como "aquele povo preguiçoso que não queria trabalhar para os portugueses". E, quase como se fossem culpados pela própria escravidão e pela escravidão das pessoas que vieram depois, foram apresentados como "aquele povo preguiçoso que não queria trabalhar e, por causa deles e da preguiça deles (!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!), os negros tiveram (!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!) que vir para o Brasil". Os negros entraram na História já como escravizados. Eles não foram apresentados como membros de várias sociedades estruturadas. Eles já "nasceram" escravizados na História que eu aprendi. Isso é tão absurdo que dá vergonha de escrever. Dá muita vergonha de escrever.
Ninguém nunca se referiu aos negros, naquela fase, como pessoas que eram Reis, Rainhas, artesãos, comerciantes, agricultores, fazendeiros, pescadores, professores, líderes religiosos, curandeiros, contadores de histórias, construtores. Eles nunca foram retratados, para a Paula-criança de 11 anos, como pessoas, mas como produtos que eram negociados. A imagem do "Navio Negreiro" da minha cabeça de 11 anos era linda. Era limpo, espaçoso, calmo. Os negros, naquela História do Brasil, estavam vindo para o Brasil na condição de escravizados, mas isso não era um "problema" porque eles já eram escravizados láááá looooonge, na África (inclusive eram escravizados por outros negros). Então, o "problema" era da África e o problema dos negros, era, sobretudo, de outros negros.
Não há possibilidade de não crescer racista. Mas há possibilidade de deixar de ser ou de estudar para deixar de cometer os erros que foram ensinados e tatuados na mente por anos a fio.
Imagina o que era o Zumbi dos Palmares? "Óbvio" que ele era um baderneiro, um va-ga-bun-do que queria vida mansa e, por isso, fugiu. Fujão. Fugia do quê, afinal? Fugia do trabalho, diriam as pessoas que me educavam. Quando foi que eu entendi que não só Zumbi, mas todas as lideranças negras estavam lutando pela liberdade do povo negro? Como entender, depois de anos de martelação e internalização (olha, menina, vai cair na prova!), que Zumbi dos Palmares queria a liberdade para o povo negro? Como a Paula de 11 anos poderia entender que o quilombo dos Palmares era enorme, administrada como uma República Africana dentro do Brasil, que chegou a ter 20 mil habitantes, organizada em cidades? Gente... não... a construção da ideia da negritude na cabeça da Paula criança era de que negros fujões e vagabundos deveriam ser punidos (preferencialmente em pelourinhos em praça pública) e que os bons negros, os trabalhadores, esses eram obedientes e prestativos, fortes e destemidos, e poderiam encarar qualquer trabalho. Q-U-A-L-Q-U-E-R T-R-A-B-A-L-H-O como limpar, cozinhar, cuidar da segurança e matar, se preciso for, os vagabundos. E que, graças a tamanha prestatividade, foram, um dia, libertos por uma lei e ganharam cartas de alforria e, com elas, poderiam ser o que quisessem da vida. O QUE QUISESSEM (!!!!!!!!!!!!!!!)
A história é absurda, e eu lamento que eu tenha aprendido assim, e lamento que outras pessoas tenham aprendido assim. E tenho vergonha desse aprendizado, e tenho vergonha de quem não está aproveitando o momento de hoje para evoluir como ser humano e entender as implicações de tudo o que aconteceu na História. Hoje, penso no absurdo que é não saber de onde se veio. Não saber de qual nação africana seus antepassados eram. Não saber o que eles eram, como se chamavam, que língua falavam, como eram seus costumes, seus valores, suas crenças. Isso me faz sentir dor. Me faz ter vontade de chorar. E, óbvio, me faz ter vontade de aprender mais, para errar cada vez menos.
É preciso desconstruir para reconstruir. Sigo aprendendo e me desculpo se sigo errando. Ainda preciso de muita ajuda.